O papel da educação num país de herança
escravista
A
educação brasileira não pode ser entendida sem levar em conta as relações entre
os diversos grupos étnicos que formaram esta nação, pois os “[...] quatrocentos
anos de escravismo foram definitivos na plasmação do ethos do nosso
país” (MOURA, 1983: 124). Portanto, é preciso destacar que o caráter da
formação do Brasil, pautado na escravidão, teve como uma de suas resultantes o
surgimento de concepções e práticas racistas que perduram até os dias atuais.
É preciso
destacar que a formação do Brasil com base no trabalho escravo teve como uma de
suas resultantes o aparecimento de práticas racistas não apenas em seu período
escravista, mas também nos séculos posteriores. Com efeito, o Brasil
pós-abolição, deveria ser repensado e reorganizado a fim de inseri-lo no quadro
do capitalismo internacional. Segundo o discurso das elites, um país
desenvolvido não poderia ser marcado por uma população negra e mestiça, ou com
conflitos raciais que o desestabilizassem. Nessa direção, duas ideologias,
inicialmente, surgiram para “solucionar” o problema: a ideologia do
branqueamento e o mito da democracia racial, que substituiu a
ideologia do branqueamento como explicação da identidade nacional (ORTIZ,
1994).
É na
especificidade das relações étnico-raciais no Brasil, portanto, que devemos
refletir sob quais mecanismos e bases as instituições políticas, culturais e
educacionais reproduziram e reproduzem os valores e padrões de uma elite
dominante, em detrimento de outras visões de mundo e referências históricas.
Levando
em consideração essa análise, é fundamental compreendermos a escola pública
como uma importante instituição responsável pela sociabilidade dos seres
humanos. Nela ocorre a possibilidade de construção das identidades, da formação
de valores éticos e morais. Contudo, a escola na sociedade capitalista assume
um caráter homogeneizador, prevalecendo um padrão estético e histórico
vinculado à sociedade européia, o que estamos chamando de monoculturalismo e
excluindo, por exemplo, a referência negro-africana da formação da sociedade
brasileira. A garantia de acesso gratuito a todos os que querem entrar na
escola não esconde contraditoriamente o seu papel de reprodução das idéias e
valores da classe dominante.
Diante do
exposto, evidenciamos que para além das aparentes oportunidades de acesso e
permanência garantidos a todos no direito à educação, o que existe realmente
são discriminações de classe e raça reproduzindo visões de mundo dominante e
instituindo o fracasso escolar para aqueles que não se adequam numa instituição
de ensino cuja organização administrativa e curricular, a relação
professor-aluno, etc. levam os discentes negros(as) a terem um rendimento
inferior ao dos(as) brancos(as).
Com
efeito, a reprodução da ideologia dominante no Brasil, que no caso da educação
é respaldada por uma visão eurocêntrica e monoculturalista, baseada numa
suposta “democracia racial” e alicerçada numa aparente “competição
democrática” tem como conseqüência o impedimento da formação da identidade
coletiva e da mobilização do segmento negro que atribui sua condição a questões
estritamente socioeconômicas ou ético-morais (incompetência, preguiça,
malandragem, etc.). Isso resultou em que poucos negros(as) viram necessidade
para se organizar e lutar contra as condições de desigualdade racial
(HENRIQUES, 2001).
Com relação à população negra,
diante do processo histórico brasileiro e das relações interétnicas no interior
das instituições oficiais de ensino, lhe foi expropriada a identidade. Suas
referências históricas, sua contribuição à construção da sociedade brasileira
foram ocultadas e/ou descaracterizadas, gerando com isso uma auto-imagem
negativa e impondo barreiras à sua organização e mobilização.
2 Educação e constituição da identidade étnico-racial
De acordo
com Pereira (1978) o estudo de História do Brasil possuiu uma herança derivada
do colonialismo cultural, que supervaloriza os feitos europeus e minimiza ou
exclui qualquer referência à história afro-asiática. O autor em destaque afirma
que os currículos são em sua maioria eurocêntricos e a população brasileira
sofreria de miopia e astigmatismo cultural, no sentido de que não
consegue estabelecer relações – nem no plano imediato, nem ao longo do processo
histórico – entre o Brasil e a África. O modo como à África, os africanos e os
seus descendentes no Brasil são vistos constituem exemplos desse colonialismo
cultural.
Conseqüentemente,
a visão sobre o continente africano se desdobra aos seus habitantes e
descendentes que formam a população brasileira. No caso do Brasil, a formação
da nacionalidade é escamoteada relegando a contribuição africana apenas a
culinária, folclore, misticismo e língua. A África para a maioria dos
brasileiros é reduzida à imagem dos quatros “T”: Tribo, Tambor, Terreiro e
Tarzan. E assim, os brasileiros deixam de reconhecer uma parte importante de
suas raízes históricas.
Como
vimos, porém, nada disso é aleatório ou espontâneo. A escola e a educação têm
como uma de suas funções o fortalecimento das visões de mundo e indivíduo da
elite dominante, que considera os valores europeus “civilizados” e, portanto,
devendo ser difundido entre as classes populares.
Em razão
disso, as classes dominantes impõem uma concepção de mundo que é sua e
utilizam-se para isso de vários meios, entre eles a escola. A escola
reproduzirá a ideologia opressora, proporcionando a hegemonia desta sobre as
demais classes, por via do consentimento.
Entretanto,
devemos superar a visão mecanicista de perceber a escola e a educação como
meros reprodutores da ideologia dominante e das condições de classes que
privilegia uma em detrimento das outras. A educação e a escola podem e devem
ser utilizadas como instrumentos de luta pelos setores oprimidos, pois na
medida em que reproduzem a dominação de classe, também, reproduzem suas
contradições, permitindo dessa forma que as classes subalternizadas vislumbrem
a superação do domínio por meio das práticas dos que trabalham na escola e da
aquisição de conhecimentos universais necessários à intervenção consciente no
mundo.
Isto
posto, destacamos as idéias de Munanga (1999) segundo o qual para se construir
uma sociedade com justiça social e equidade é necessário ter como ponto de
partida uma identidade coletiva mobilizadora que possibilite romper com a ideologia
dominante e, nesse sentido, com o olhar do outro sobre si mesmo. No que se
refere à população negra brasileira, sua identidade foi, ao longo de nossa
história, negada e/ou descaracterizada, impondo barreiras à constituição de uma
identidade auto-afirmativa que possibilitasse a mobilização e organização desse
segmento para reivindicar por direitos relacionados à discriminação racial.
Segundo
Bernd (1987: 38) a “[...] busca pela identidade do negro é a busca de
autodefinição”, pois encontra-se em meio a valores de um mundo branco, de um
padrão eurocêntrico, que os aliena em relação às suas referências históricas.
Por não
possuírem uma identidade coletiva mobilizadora, os oprimidos, no caso deste
trabalho a população negra, não identificam o opressor em seus pensamentos e em
suas ações e por isso possuem atitudes fatalistas. Acreditam na realidade
opressora como algo fixo e pré-determinado por forças exteriores, percebem-se,
pois, desvalorizados. É a interiorização da visão opressora incidente sobre ela.
Diante do
exposto, e levando-se em consideração o processo histórico e os mecanismos de
reprodução da ideologia dominante, veiculada em especial pela escola, a
população negra brasileira além de ter impedimentos à formação de sua
identidade, se vê estigmatizada frente aos valores que negam sua história, suas
lutas e seus modos de viver.
Com
relação à sociedade brasileira existe todo um estereótipo de normalidade e
beleza. Ser branco(a), se possível loiro(a), de olhos azuis, ter curso
superior, ser cristão, constituem atributos vistos como bons e desejáveis. Um
negro(a) subempregado(a) ou desempregado(a), de formação escolar incompleta,
morador de periferia, pelo contrário, foge completamente do estereótipo
considerado desejável por grande parte da população brasileira.
Daí
surgem os estigmas referentes aos negros(as) vistos como desocupados,
preguiçosos ou marginais. Quanto mais nos aproximarmos do referencial desejado,
mais teremos a chance de fugir da estigmatização e dos efeitos sociais dela
decorrentes.
Nesse
contexto, duas saídas apresentam-se: ou os oprimidos fazem de tudo para se
parecerem com o opressor; ou reconquistam suas dimensões negadas.
Na
primeira resposta, o oprimido se enxerga com o olhar do opressor, com o qual
quer parecer o máximo possível. A vergonha de si mesmo torna-se a marca de sua
personalidade.
Na mesma
linha de raciocínio, referente à identidade dos grupos dominados, Bourdieu
(2004) concebe duas perspectivas. Ou aceitam a definição de sua identidade pela
classe dominante buscando, inclusive, sua assimilação por meio da recusa de
suas características identitárias (linguagem, vestuário, estilo de vida,
religião, etc.); ou por meio de uma luta coletiva, eliminam a valoração dos
seus estigmas no sentido de impor uma reviravolta nas definições produzidas
pelas classes dominantes e com isso definir, de forma autônoma, os princípios
de organização do mundo social e de sua identidade.
A luta,
nesse sentido, contra a dominação simbólica que impõe uma visão negativa sobre
a identidade dos dominados, não intenta apenas conquista ou reconquista da
identidade, mas o poder de definir sua própria identidade do qual havia
abdicado em detrimento da visão dominante, no momento em que se negaram para
serem reconhecidos. “O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa
pela reivindicação pública do estigma, constituído assim em emblema, [...]”
(BOURDIEU, 1989: 125).
A
identidade negra surge, então, da dinâmica conflituosa entre a visão dominante
eurocêntrica, que nega os referenciais negros, e a busca pela valorização
desses referenciais por esse segmento da população. Ou seja, de um sentimento
de perda, negação, constrói-se uma auto-imagem positiva e altiva da pessoa
negra. É uma resposta política à situação de opressão na qual a população
negra, descendente de africanos escravizados, se encontrou ao longo da história
do Brasil.
Seguindo
a análise de Munanga (2000), a identidade étnico-racial não passa
necessariamente pelo aspecto cultural, mas é um posicionamento político frente
à situação comum de opressão. A identidade não existe, pois, somente a partir
de um referencial empírico, a exemplo da cor da pele, mas define-se pela
relação estabelecida com a sociedade hierarquizada e as visões de mundo
dominantes.
A
população negra, ao recuperar sua identidade, no sentido de se perceber com
sujeito transformador e construtor da realidade, deixa de ser menos receptora
das diretrizes dominantes e se transforma em agente histórico. Percebemos,
então, que a identidade étnico-racial constituída não se configura apenas como
uma referência de afirmação, auto-estima, mas constitui-se num instrumento de
organização e mobilização.